sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Será que remédios para baixar o colesterol podem ajudar na covid-19?

Lúcia Helena


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Não sei se faz ideia, mas um bocado de brasileiros adultos têm taxas de colesterol acima daquelas que os manteriam longe do risco de um problema cardiovascular. Segundo o EPICO — o Estudo Epidemiológico de Informações da Comunidade, realizado pela Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, a SOCESP —, entre 9 mil homens e mulheres tratados em unidades básicas de saúde de 32 cidades paulistas, apenas 16% estavam com os valores dessa substância no sangue dentro da meta.

Outros trabalhos realizados pelo Brasil afora já apontavam algo por aí — em geral, somente de 16% a 18% das pessoas têm o seu colesterol sob controle e esse parece ser, de longe, o fator de risco em que menos ficam de olho. Uma minoria dá bola.

Há alguns caminhos para manter a situação do colesterol sob rédeas firmes. Praticar atividade física é um deles seguramente. Fechar a boca para o excesso de gordura saturada e açúcar no prato é outro. Manter um peso adequado também é importante. Mas, apesar dessas e de outras medidas ajustando o estilo de vida, engolir remédios para baixar o colesterol é — ou deveria ser, se todos se cuidassem — inevitável em muitos casos. E agora surge mais um bom motivo para seguir a prescrição: as estatinas, medicamentos indicados para quem tem colesterol elevado, podem ajudar no tratamento da covid-19.

"Ninguém está falando que elas previnam, muito menos que curem a doença. Mas são uma opção tratamento suplementar, que melhora as condições de saúde de quem foi infectado", esclarece a cardiologista Maria Cristina Izar, diretora de Promoção e Pesquisa da SOCESP e professora da Universidade Federal de São Paulo. Portanto, as estatinas aumentam as chances de alguém sobreviver ao Sars-Cov 2 e não ter sequelas.

A professora Maria Cristina menciona um trabalho realizado na China, na Universidade de Wuhan, com 13.981 indivíduos internados por causa da infecção pelo novo coronavírus. Entre os que usavam estatinas — tanto sozinhas quanto junto com remédios para diminuir a pressão arterial —, os autores observaram depois de um acompanhamento de 28 dias um número 19% menor de mortes e uma menor necessidade de ventilação mecânica também.

No passado, alguns trabalhos já tinham sugerido que pacientes medicados com estatinas e que foram hospitalizados em função de gripes e pneumonias corriam menor risco de problemas cardiovasculares, fatais ou não. Ou seja, já havia uma pista para os pesquisadores chineses levantarem essa hipótese. E eles não estão sozinhos: outros estudos pelo mundo afora, só que menores, apontam na mesma direção.
Por que tomar estatinas pode ajudar

"Só de ouvir o nome estatina, todo mundo já lembra de sua ação diminuindo o colesterol, que é mesmo a principal delas", observa a cardiologista. "No entanto, existem diversos outros efeitos, o que nós, médicos, chamamos de pleiotropia", diz ela, arriscando a expressão de origem grega que, traduzindo, significaria algo como "muitas mudanças". É o termo usado na área da saúde quando, ao mexer em um único gene, receptor ou substância no organismo, você acaba desencadeando uma série de coisas. É bem o caso aqui.

"As estatinas evitam a agregação de plaquetas, moléculas que, quando se juntam, formam os coágulos. Embora eu não vá dispensar outros medicamentos mais efetivos nisso, se notar que um paciente vai precisar delas, elas têm esse resultado, sim", começa a enumerar a médica. "Por consequência, também são antitrombóticas, ou seja, dificultam o aparecimento de trombos. Têm ainda uma ação antiinflamatória considerável. Podem dilatar ligeiramente os vasos, favorecendo a passagem do sangue. Mas, acima de tudo, melhoram a função do endotélio e isso parece ser peça-chave em toda essa história."

O endotélio é o revestimento interno de absolutamente todos os nossos vasos sanguíneos — uma camada delicadíssima, da espessura de uma única célula. E o que o novo coronavírus faz com ela é covardia: ele provoca uma endotelite generalizada. Ou seja, inflama todo esse tecido. Isso não pode dar em boa coisa. E não dá mesmo. Contornar a situação é um dos maiores perrengues dos médicos na linha de frente. Um dos… Tem mais.

O Sars-CoV 2 , para completar seus estragos, aumenta a coagulação dentro de veias e artérias. "Um trabalho brasileiro recente, publicado pela Fapesp, examinando a boca de indivíduos infectados, mostra os vasos sublinguais tomados por minúsculos coágulos ou trombos", diz a professora.

Agora, imagine o mesmo fenômeno podendo acontecer da cabeça aos pés e pense no risco de, em uma dessas, o cérebro sofrer um AVC, o coração infartar ou até mesmo um desses trombos ir parar nos pulmões, atrapalhando de vez o seu trabalho. Isso é o que acontece de um lado.

De outro lado, temos remédios que justamente evitam a inflamação intensa dos vasos e previnem os famigerados trombos. "Pela somatória dessas ações, parece plausível, então, que as estatinas ajudem os doentes a enfrentarem a covid-19", diz a cardiologista. Faz mesmo sentido.

E outra vantagem, já observada por cientistas, é que o uso combinado de estatinas e de medicamentos prescritos para o controle da pressão não promove um aumento da mortalidade ou de efeitos indesejáveis em pacientes com covid-19.

Além disso, a diminuição do colesterol pode ser interessante sempre. Ainda mais quando se está acamado em uma UTI. Ora, se podem surgir trombos pelo caminho da circulação, pior será se ele estiver estreitado por causa de placas pelos vasos. Sem contar que o colesterol tende a estacionar em suas paredes quando há muitas substâncias inflamatórias correndo soltas — inflamação exagerada no corpo e colesterol dando bobeira é placa na certa.
A redução do colesterol

Vamos deixar claro: o colesterol, em si, é uma substância importantíssima para o organismo. Vital para a saúde. Faz parte de todas as membranas e das organelas no interior das células. Sem ele, não aconteceria a síntese de hormônios sexuais. Nem teríamos a badalada vitamina D, para ficar em alguns exemplos.

"É tão importante que alguns órgãos se garantem e produzem a sua própria cota de colesterol", conta Maria Cristina Izar. "O cérebro faz isso, as gônadas também. O fígado, então, nem se fala: é o nosso maior produtor de colesterol."

O problema é quando essa molécula fica sobrando no sangue e não é removida. Aí tem enorme probabilidade de se depositar, formando as temidas placas. "Atenção: muitas vezes, se o indivíduo tem outros problemas, como diabetes, ele nem precisa ter taxas tão elevadas para correr esse risco, porque é como se essa doença potencializasse a capacidade de o colesterol se depositar nas paredes arteriais", ensina Maria Cristina.

De modo geral, o que uma estatina faz, então, é bloquear a síntese de colesterol nas células, como as do fígado, suas grandes fabricantes. Daí, em uma espécie de reação, os receptores nas superfícies celulares passam a captar mais colesterol do sangue e ele vai caindo na circulação. E, importante, sem o perigo de faltar em nenhum tecido onde é essencial por mais que despenque na corrente sanguínea, já que os órgãos vitais dão um jeito de produzi-lo.

A redução do colesterol no sangue não apenas impede o aparecimento de novas placas — ou ateromas— e o crescimento das já existentes. "Muitas vezes, elas diminuem de tamanho e de volume, o que constatamos por meio de exames em que o catéter, passeando pelos vasos, carrega uma ponteira com ultrassom, o que nos possibilita fazer uma série de medições das placas em seu interior", diz a cardiologista. "Quando elas encolhem, é como se o tempo andasse para trás dentro das artérias."

Regressões assim são notadas quando os médicos indicam estatinas mais potentes, nem sempre necessárias para todos os pacientes. "O fato é que a redução de milímetro na placa já é acompanhada, clinicamente, de uma diminuição de mortes, de infartos, de AVCs com sequelas, até mesmo de crises de angina", conta a médica.

Para você ter noção, uma redução de cerca de 40 miligramas de colesterol por decilitro de sangue já corta em 22% a probabilidade desses eventos nada agradáveis.
E com a covid-19, é para continuar tomando?

"Sim", responde Maria Cristina Izar, sem hesitar. "Se a pessoa já se medicava com estatina, deve fazer isso mais do que nunca, diante dessa pandemia e da possibilidade de a medicação melhorar a sua situação se, por azar, ela adoecer com o novo coronavírus." Na opinião da médica, os pacientes que tomavam o remédio podem continuar a recebê-lo inclusive se forem internados com covid-19.

Pergunto, então, sobre quem nunca tomou estatina, se seria uma boa hora para começar. "Se a pessoa tem indicação do seu médico, é um bom momento. Caso contrário, óbvio que não. Ninguém precisa sair tomando estatina por medo do coronavírus, só se for uma prescrição para tratar o seu colesterol alto."

O interessante, reparando bem, é um conceito por trás da possível aplicação de estatinas na covid-19: se ainda não dá para derrotar o inimigo com remédios específicos ou vacinas, que a Medicina encontre meios de a gente tolerá-lo, resistindo bravamente ao mal que se mostra capaz de nos fazer. Se alguém tiver de morrer de cansaço, penso, que seja esse maldito vírus.

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