Mesmo com 30% do Fundo Eleitoral, gestão falha de financiamento pelos partidos brasileiros pode restringir a eleição de mais vereadoras e prefeitas.
Quando foi eleita a maior bancada feminina da Câmara dos Deputados em 2018, a obrigação de um financiamento mínimo para candidaturas femininas foi apontada como principal razão e como uma conquista na luta por ampliar a representatividade de gênero nos espaços de poder. Dois anos depois, a falta de regulamentação sobre a gestão de recursos pelos partidos brasileiros pode restringir a eleição de mais vereadoras e prefeitas.
Há dois anos, passou a ser obrigatório que 30% do Fundo Eleitoral fosse direcionado para candidaturas femininas. Esse é o mesmo percentual da cota de candidatas. Naquele ano, foram eleitas 77 deputadas federais - 26 a mais do que as 51 escolhidas em 2014. Ainda assim, o número representa 15% do total de integrantes da Câmara. Nas assembleias legislativas, o movimento foi semelhante. Hoje elas são 15%. Na legislatura anterior, eram 10%.
O avanço da representatividade nos cargos proporcionais nas últimas eleições gerais não ocorreu na disputa por postos majoritários. O Brasil conta com apenas uma mulher governadora, mesmo número de 2014. No Senado, onde o mandato é de 8 anos, a presença feminina caiu na última eleição de 13 para 12 senadoras.
É completamente diferente você direcionar o recurso para uma candidata mulher ou para uma vice mulher de uma chapa que tem como cabeça um homem. Flávia Biroli, presidente da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política).
Lei Eleitoral obriga desde 2009 os partidos a destinar 30% das candidaturas para cada gênero.
Apesar de ser vista como uma forma de impulsionar candidaturas competitivas, a cota de financiamento precisa ser melhor regulamentada para ser mais efetiva, no entendimento de cientistas políticas e de especialistas na área.
Para o pleito de 2020, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) definiu que o valor do Fundo Eleitoral precisará ser proporcional. Se houver 40% de candidatas mulheres, por exemplo, 40% do dinheiro irá para elas. Não houve, no entanto, uma definição de como os partidos devem repartir o dinheiro entre as mulheres.
“Nas eleições de 2018, não havia impedimento de se concentrar esse recurso em uma ou outra candidatura. Há uma demanda forte para que houvesse uma decisão do TSE que esclarecesse. Esse é um problema grande. De um lado, é interessante que a dinâmica partidária seja de apostas em candidaturas vistas como com potencial, só que essa história têm subtexto. Você corre o risco de direcionar o dinheiro para mulheres, por exemplo, que sejam de famílias de políticos. Tem também a questão das vices. É completamente diferente você direcionar o recurso para uma candidata mulher ou para uma vice mulher de uma chapa que tem como cabeça um homem”, afirma a cientista política Flávia Biroli, presidente da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política).
No entendimento da especialista, é preciso que haja punição aos partidos que não cumprirem a cota de candidaturas e aos que não fizerem o direcionamento dos recursos. A falta de normas específicas impede uma fiscalização mais precisa da Justiça Eleitoral.
Partidos ainda não cumprem cota feminina
Apesar de ser vista como uma forma de impulsionar candidaturas competitivas, a cota de financiamento precisa ser melhor regulamentada.
A Lei Eleitoral obriga os partidos a destinar 30% das candidaturas para cada gênero, desde 2009. A cota já existia na legislação anterior, mas era apenas uma reserva. Na prática, muitos partidos deixavam essas vagas vazias.
Ainda assim, foi apenas em 2018 que a cota foi cumprida pela primeira vez, ao se analisar os dados gerais. Das 7.689 candidaturas aptas, 31,6% eram mulheres. Ao analisar, contudo, as coligações, o cenário é diferente. A norma foi descumprida em 44 das 316 coligações, de acordo com estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Além disso, 8 partidos (PSD, PROS, PCB, DEM, Podemos, Solidariedade, Rede e PMN) não cumpriram com a cota globalmente, isolados de suas coligações. Apenas o Novo atingiu o índice sem depender de outras siglas, segundo o levantamento.
Quanto à cota do Fundo Eleitoral, ao analisar apenas a disputa entre deputados federais, estaduais e distritais, apenas 13 dos 34 partidos (38%) cumpriram a cota do Fundo Eleitoral, de acordo com as pesquisadoras da FGV. No cenário que considera tanto cargos majoritários quanto proporcionais, o total de siglas regulares subiria para 19 (56%). Já se forem incluídas chapas em que a vice ou suplente é mulher, apenas 3 siglas (Avante, Podemos e PRP) ficam irregulares.
Decisão sobre dinheiro na mão de homens
Levantamento do HuffPost com 18 siglas mostra que controle de cargos que decidem nomes e financiamento de candidaturas é sobretudo de homens.
Sem uma regulação, quem decide sobre o dinheiro é quem está no comando dos partidos. Levantamento do HuffPost com 18 siglas mostra que controle de cargos que decidem nomes e financiamento de candidaturas é sobretudo de homens. Em algumas siglas, as vagas femininas são ocupadas por parentes de caciques partidários.
Ao julgar uma consulta em maio deste ano, o TSE decidiu que não pode ser obrigatória a presença de ao menos 30% de mulheres na direção dos partidos. A corte entendeu que essa exigência fere a autonomia partidária e que tal mudança só poderia ser feita pelo Legislativo. Foi decidido que a cota de 30% será para candidaturas nas eleições internas das legendas, mas não foi estabelecida qual punição a quem descumprir a decisão.
Para a cientista polícia Carolina de Paula, pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), esse modelo permite que o partido possa escolher continuar “promovendo carreiras, oligarquias e famílias que já estão no poder há muito tempo”.
“É cada diretório municipal que decide para onde vai o dinheiro. Então, se ele quiser concentrar na mão dessa família de muitos políticos - porque muitas mulheres são usadas pela família, né? Aqui no Rio, por exemplo, o MDB designou uma parcela muito grande para a filha do Eduardo Cunha”, ressalta a especialista. Ela faz referência à Danielle Cunha, filha do ex-presidente da Câmara dos Deputados e candidata à deputada federal em 2018. Ela recebeu R$ 2,03 milhões da sigla na campanha e não se elegeu.
Pesquisas também apontam que as candidaturas femininas dependem mais de recursos públicos. De acordo com o estudo da FGV, em 2018, 88% do financiamento das candidaturas femininas vieram dos Fundos Eleitoral ou Partidário.
Uma das criadoras da ONG Elas no Poder, a cientista política Letícia Medeiros conta que uma das estratégias para candidatas é atuar em conjunto dentro das estruturas partidárias.
“A gente orienta muito às mulheres a negociarem o recurso coletivamente. Se elas agirem assim, elas conseguem se fortalecer politicamente dentro do partido, garantir que haja um repasse mínimo para todas campanhas femininas e até se qualificar e entrar nessa disputa política”, afirma.
Na avaliação de especialistas, nas eleições municipais, superar os entraves estruturais para ampliar a presença de mulheres na política pode ser ainda mais difícil. As mulheres são 52% do eleitorado brasileiro, mas 11,6% das prefeitas e 13,6% do Legislativo municipal.
As eleições para os cargos de prefeito e vereador foram adiadas para 15 e 29 de novembro, respectivamente, primeiro e segundo turnos. Os partidos e coligações têm até 26 de setembro para registrar os candidatos e até 27 de outubro para apresentar à Justiça Eleitoral um relatório discriminando as transferências do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral e a estimativa dos recursos recebidos.
O destino das candidaturas laranja em 2020
Manifestante em protesto feminista com imagem da vereadora Marielle Franco no rosto.
Como será o uso de candidaturas laranja para cumprir a cota de 30% de mulheres em 2020 ainda é uma incógnita. Para Flávia Biroli, nos últimos anos, houve um avanço na sensibilização de atores do Judiciário e do Ministério Público para questões de gênero, o que pode fortalecer o combate a esse tipo de fraude, junto à mobilização social.
“O debate público é outro. E há as decisões judiciais, mas também as ações em andamento pressionam os partidos. Não dá mais para eles tomarem as decisões dentro de uma caixinha. A gente tem uma pressão inclusive dentro do Judiciário hoje que não existia há alguns anos”, afirma.
O tema ganhou espaço com a investigação envolvendo suposto desvio de recursos por meio de candidatas mulheres de fachada pelo PSL nas eleições de 2018. Em setembro de 2019, o TSE cassou o mandato de seis vereadores de diferentes partidos de Valença do Piauí (PI) pela prática de candidaturas laranja.
Apesar do avanço, para Luciana Ramos, cientista políticas da FGV, é preciso cautela. “Ainda está por ser escrita a história se isso vai de fato criar um precedente ou não. É uma decisão isolada e por maioria apertadíssima, por 4 a 3. Não dá para dizer ainda se, num próximo caso, essa decisão vai se manter e de fato será a diretriz que está sendo dada para os partidos”, afirma em referência ao julgamento dos vereadores do Piauí.
Na avaliação da especialista, os partidos “vão testar um pouco mais a força dessa decisão judicial e a forma como vão selecionar candidatas e apostar nelas”. Ela também aponta a necessidade de uma definição mais precisa sobre esse tipo de prática. “A Justiça Eleitoral ainda não deu sinais muito claros sobre o que é uma candidatura laranja. Não existe nem na própria legislação. Esse conceito está por ser construído”, completa.
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Andréa Martinelli Editora sênior, HuffPost Brasil
Marcella Fernandes Repórter de Política e Mulheres do HuffPost Brasil
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Fonte: HuffPost News,
The Huffington Post