sábado, 19 de dezembro de 2020

PRINCÍPIO DE INFARTO: Será que realmente existe esta condição?


Imagem: iStock
Edmo Atique Gabriel
Colunista do UOL

Existe uma temática que se popularizou ao longo dos anos: o conceito de princípio das doenças. Confesso que este conceito tem gerado muitas especulações e confusões, adquirindo um caráter contraditório e inapropriado em muitas situações.

A maior parte das condições biológicas não admite o termo "princípio" como forma de confirmar ou excluir a existência de uma doença ou agravo.

Por exemplo, quando uma pessoa apresenta um sangramento, este fato por si só já está consolidado. O que pode ser analisado seria a intensidade, a quantidade e a frequência deste sangramento.

Não seria cabível e lógico desvalorizar o sangramento dizendo que o mesmo está no início ou no princípio. Não se deixará de dar atenção ao sangramento por se considerar erroneamente que o mesmo ainda está no princípio.

Ninguém em sã consciência vai permitir que, após o diagnóstico de um sangramento, o mesmo permaneça ativo, sem nenhuma intervenção de controle, simplesmente porque está no princípio.

Nota-se nitidamente que existe uma penumbra ao redor deste conceito do princípio das doenças. Além disso, o termo "princípio" acaba sendo equiparado a uma situação mais leve, de menor quantidade, intensidade, de menor importância.

Caso eu mencionasse que uma pessoa está começando a morrer, o que você pensaria? Isto seria mais tênue, mais leve? Ou se por exemplo eu dissesse que uma determinada pessoa teve um "princípio" de uma parada cardíaca, isto seria então motivo de alívio porque a parada cardíaca não aconteceu, apenas começou? Perceberam a confusão que se estabelece?

Recentemente tivemos o caso do ator e secretário especial de cultura, Mário Frias, que teria apresentado um "princípio" de infarto do coração. Mário Frias foi submetido a um cateterismo cardíaco para tratamento deste "infarto inicial".

Tomando como base este caso de repercussão nacional, pode-se perceber que este conceito de "princípio" de infarto denota uma ideia de menor importância, de menor risco, de algo que não foi tão sério.

Por outro lado, o grande contraponto foi que uma pessoa que teve um "princípio" de infarto foi submetida a um cateterismo cardíaco, com implante de "stents" para desobstrução de artérias.

Caso ainda esteja um tanto quanto confuso, pensem da seguinte forma: caso Mário Frias tivesse tido um infarto do coração em sentido mais amplo e não um "princípio" de infarto, ele teria sido submetido a um cateterismo cardíaco e implante dos "stents"? Sim, a conduta teria sido absolutamente a mesma.

Dessa forma, depreende-se que ter um infarto do coração em sentido amplo seria tão importante quanto ter um "princípio" de infarto, seja em termos das repercussões, seja em termos do tratamento a ser implementado.

Mas ainda fica a dúvida: o termo "princípio" de infarto está correto tecnicamente ou acaba sendo empregado de forma mais aleatória e inespecífica?

Para melhor compreensão, vamos pensar sobre o que seria um infarto do coração, imaginando o que acontece no músculo cardíaco (miocárdio), no momento do infarto. Infarto, por definição, seria a morte de um grupo de células do músculo cardíaco, uma situação definitiva.

Logo, quando alguém tem um infarto, sabe-se que determinado segmento do músculo cardíaco perdeu viabilidade. No infarto fulminante, aquele que mata de imediato, a quantidade de células mortas do músculo cardíaco torna-se tão proeminente que acaba por induzir um quadro de falência aguda do coração e morte da pessoa.

Analisando estas considerações, percebe-se que este conceito de "princípio" de infarto pode ser muito frágil, visto que se o infarto representa a morte celular, não há como estar no princípio da morte celular. Morte é algo já consolidado.

O que pode acontecer e isto sim acaba sendo erroneamente traduzido por um "princípio" de infarto, seria uma pessoa apresentar sintomas que indicam um prenúncio de algo mais sério, sintomas como angina (dor no peito) e formigamento no braço esquerdo.

A pessoa pode estar apresentando estes sintomas, ou outros mais, sem que tenha ocorrido a morte das células do músculo cardíaco, ou seja, pode apresentar sintomas importantes sem a concomitância de um infarto propriamente dito.

De qualquer forma, "princípio" de infarto ou infarto do coração bem estabelecido requerem cuidados, abordagem imediata com medicamentos e suporte hospitalar e, muitas vezes, a intervenção ou a terapia mais invasiva poderão ser exatamente iguais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.