Fonte: Valor Econômico
Simony Maia Lins e Sara Regina Diogo*
A jurisprudência recente exarada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quando do julgamento do Recurso Especial nº 1128981/SP, baseada no critério meramente topográfico, posicionou-se no sentido de que o exercício do domínio sobre área de preservação ambiental situada dentro de empreendimento imobiliário urbano não exime o contribuinte da incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), por entender que o fato gerador desse tributo permanece íntegro pelo simples fato de a propriedade imobiliária ser localizada em zona urbana de determinado município.
No entanto, esse posicionamento não se coaduna com o sistema jurídico no qual se insere esse tributo. Historicamente e, em outras jurisdições, a cobrança de um tributo sobre a propriedade imobiliária nas cidades está indissociavelmente ligada à noção de urbanização. Com efeito, a tributação da propriedade imobiliária urbana consiste em uma fonte de financiamento estatal das mais legítimas, cuja imposição de um imposto sobre o domínio da propriedade pressupõe uma causa para sua cobrança: a viabilização por parte do Estado, do exercício regular do próprio domínio urbano.
No Brasil, seguindo a conformação histórica cunhada sobre o princípio da função social da propriedade, o artigo 32 do Código Tributário Nacional estabelece que os municípios somente estão autorizados a cobrar IPTU em áreas urbanizadas ou urbanizáveis. Por conseguinte, legitima-se a cobrança do IPTU, tão e quão somente quando presentes no mínimo dois dos elementos previstos taxativamente no primeiro parágrafo do art. 32 do CTN (vg calçamento, sistema de esgotos, iluminação pública e outros) ou haja efetiva urbanização em progresso, conforme estabelece o parágrafo segundo do mesmo artigo. Portanto, nosso Código Tributário Nacional estabeleceu a necessidade de melhoramentos na área urbana ou urbanizável, sem os quais não haveria legitimidade para pagamento do IPTU. Constitui-se assim a regra do art. 32 do CTN uma espécie de comando negativo ao exercício da competência dos municípios. Contudo, apesar da clara dicção do CTN, alguns municípios vêm impondo a cobrança do IPTU em áreas de reserva ambiental, quando contíguos a áreas loteadas.
Deságua, portanto, em uma cobrança abusiva a partir de uma interpretação distorcida dos efetivos contornos do Estado Social de Direito. Nesse contexto, dada a necessidade de concretização de uma política de bem-estar coletivo, com vistas a garantir, entre outros direitos constitucionais, a função social da propriedade imobiliária, o IPTU se revelou, cada vez mais, imprescindível ao desempenho das funções dos municípios, dada a concentração nos centros urbanos. No entanto, vale ressaltar que isso não significa que tais entes políticos não devam empreender uma organização mínima, de modo que possa a coletividade se beneficiar da infraestrutura e dos serviços disponibilizados. Sem tal, a cobrança de um tributo imobiliário seria expropriação e não imposição legítima do Estado.
É exatamente com vistas a tornar-se uma imposição legítima que o art. 32 do CTN impõe condições mínimas consubstanciadas nos melhoramentos a serem realizados pelo poder público nas propriedades urbanas ou urbanizáveis, como sendo elementos necessários à legitimidade da cobrança do IPTU dos proprietários de imóveis urbanos. Também não há que se falar em necessidade de edição de lei municipal isentiva de IPTU para áreas de preservação ambiental, eis que a ausência dos requisitos mínimos, por sí só, constitui hipótese de não incidência da referida exação, ou seja, para essas áreas, a obrigação tributária não chega sequer a nascer.
Desta feita, verifica-se que o critério topográfico revela-se insuficiente e não se harmoniza com o sistema jurídico pátrio. Tanto é assim que esse critério não basta para dirimir a competência para cobrança do IPTU e do ITR, na medida em que, além de se observar a circunscrição das áreas - se localizadas em perímetro urbano ou rural -, de acordo com a legislação e a jurisprudência, é preciso atentar para a destinação econômica dada à propriedade.
Claramente, a cobrança de IPTU em áreas de preservação ambiental, onde a urbanização é vedada, apresenta-se como antitética à ideia de prévia ou latente urbanização empreendida pelo ente político, conquanto não se deva urbanizar áreas de preservação. Não se trata aqui de desconhecer que o IPTU grava um domínio útil (animus domini), independentemente de que forma esse se revista, como, aliás, reconheceu o STJ. Mas, sim, reconhecer que a vedação de urbanização de área ambiental pela União ou pelos municípios impede a cobrança da referida exação, por ausência de elementos que afirmam a materialidade do IPTU. Num momento em que toda a sociedade procura garantir o meio ambiente sustentável, a cobrança de IPTU sobre áreas de reserva ambiental é uma contradição ao bem jurídico que se quer proteger, contrária ao art. 32 do CTN, e, portanto, ilegítima e inconstitucional.
*Simony Maia Lins e Sara Regina Diogo são advogadas de Vinhas e Redenschi Advogados